O Almoço de Natal em Uma Casa Muito Especial

Divido com meus queridos leitores uma deliciosa crônica escrita por meu fraterno amigo Elmo Said Dias.

Hoje ele almoçou em um lugar muito especial e nos relata o que aconteceu: 

GEMADA DE CHOCOLATE

Ele atendeu a porta de regata e de chinelos. A barriga não era tão proeminente quanto eu sempre imaginei, mas a regata estava justa. As unhas dos pés eram como quase todas as unhas de gente velha, deformadas pelos anos de uso de sapatos.

No caso dele, de botas.

Entra. Daqui a pouco sai um almoço. A gente normalmente faz arroz de forno com o resto do peru no dia 25.

Uma sala modesta, com bastante quinquilharias. Um tapete de urso polar amarelado, a cabeçona do urso de frente pra minha poltrona.
Uma mesa de centro pequena onde tinhas umas 3 taças de vinho marcadas no fundo pelo resto da bebida.

– Essa madrugada foi atípica – ele me disse – mais comi do que viajei por aí. Tudo meio esquisito esse ano.

No fundo eu ouvia uma panela de pressão chiando e aquele cheiro de vapor de carne tomava a casa.

– Eu estava pensando em gravar esse papo, mas meu imaginário de criança me fez trazer um bloquinho e um lápis bem apontado – eu disse.

Ele sorriu, mostrando as olheiras profundas debaixo dos olhos verde água.

– Isso é sempre bom. O que as pessoas não entenderam é que clichês são bons. Elas se tornam adultas e fogem para a profundidade intelectual quando tem chance. Não adianta nada. Os clichês são revigorantes, pode acreditar.

A sala toda parecia ser mesmo um lugar comum do imaginário. Eu me via claramente numa pintura do Norman Rockwell.

Só o vermelho das calças dele que era mais vivo e metálico do que eu esperava, achando que ao vivo o tecido seria lindamente desgastado pelo tempo.

– Bem, acho que vai ser inevitável te perguntar dessa situação do Coronavirus – eu comecei – o que mudou na tua rotina de Natal?

Ele coçou as bochechas – não tinha feito a barba com capricho ali – e se serviu de água de uma moringa com escritos élficos. Depois eu iria perguntar o que estava escrito ali.

– Não mudou muita coisa. O mundo tá girando meio normal… as cartas vieram, um pouco menos do que nos outros anos. Mas deu pra sentir esse clima de incerteza, não é bem um tom sombrio ou angustiado… já vi isso acontecer umas 3 vezes. Na gripe espanhola foi meio parecido, e vou até te dizer uma coisa engraçada: o mundo daquela vez não tinha esse sentimento de “incredulidade”. Todo mundo estava meio conformado, dando a coisa por encerrada.

– Tipo fim do mundo? – perguntei

– É. Mais ou menos como se dissessem: ok, era isso. Menos arrogância científica, sei lá. Uma relação mais orgânica com tudo, se der pra colocar assim. Como se não houvesse tanta tensão, já que a maioria das famílias começava a observar que era meio certo que pelo menos metade não ia mais estar ali logo. Como é que vcs falam hoje? “aceitaque dói menos”.

– Terra arrasada inevitável? – provoquei

– Humm… acho que dá pra colocar desse modo. Você não entenderia totalmente. As pessoas não se achavam tão gigantescas como hoje. Aliás, pra falar bem a verdade, a humanidade nunca foi tão enorme numa auto avaliação quanto hoje… mas isso é um papo muito chato.

– Não, por favor, continue – pedi

Não, deixa pra lá. Quer beber alguma coisa?

Não estava tão frio como eu imaginava, mas tudo que eu queria na casa do Noel era beber uma gemada. Clichês.

– Uma gemada ou um chocolate quente se tiver.

Ele me olhou e riu divertidamente.

– Claro que tem.

Levantou e saiu pela porta do corredor.
Fiquei olhando alguns pequenos quadros em cima da lareira, todos desenhos ou pinturas infantis, onde ele era retratado com traços tortos e cores mal colocadas. Acho que todo mundo tem o direito de ser narcisista.
Umas taças de estanho bem surradas se misturavam com uns potes de cristal trabalhado e uns recipientes de vidro medieval. Não havia ordem naquela bagunça, mas com certeza a triagem pra cada um daqueles objetos estar ali seguia um critério muito pessoal.

– Misturei as duas coisas. Gemada de chocolate. Você vai gostar.

Peguei a caneca verde acinzentada, que tinha muitas letras em árabe por toda sua lateral. Fiquei pensando em como o cinema americano realmente conseguia minar o fundamentalismo.

– E as cartas? Diferentes esse ano? – perguntei

– Não na maioria. Muita coisa totalmente igual. Aliás, maravilhosamente igual. Uma das coisas mais deliciosas da minha missão é essa coisa das crianças: elas ainda não se adequaram socialmente, especialmente os bem pequenos. Sinceramente, quanto mais erros de ortografia e caligrafia sem padrão, mais isso mexe comigo.

– Como assim mexem com você?

– Um sentimento ambíguo. Se ao mesmo tempo não fico indignado com os adultos, eu digo pra mim mesmo há milhares de anos que não posso deixar de me entregar. Não é só aquele papo da “pureza das respostas das crianças”… É uma coisa muito mais forte e prática. É demonstração de necessidade, sabe?

– Necessidade do Papai Noel?

– Não… não é bem isso. Necessidade de intensidade, de cor, de abstrato, de lúdico.

– Os pequenos precisam disso?

Ele riu folgadamente, e eu fiquei meio absorto.

– Não, não. EU preciso disso – ele riu um pouco mais, mas falava bem sério.

Fiquei por um momento meio congelado misturando um monte de conceitos e ideias subjetivas.

Deus, minha mãe, Cristo, fitas vermelhas de presente, filas de mendigos recebendo sopas, chineses de chapéu cônico com sapatilhas pretas. Eu não era mesmo o mais indicado pra aquela entrevista.

Dei um gole na gemada de chocolate e fechei os olhos num sentimento satisfatório.

“O almoço tá na mesa” – a senhora da casa gritou de algum lugar lá no corredor estreito.

– Vamos almoçar – ele levantou num convite paternal – o arroz de forno do dia 25 aqui em casa é um clássico. Depois eu continuo fingindo que posso te dar sábias noções

sobre a natureza humana.

Concordei sorrindo com ele e enquanto o seguia até a copa, desisti de prosseguir na entrevista.

Já tinha clichês suficientes pra pelo menos ter umas horas de paz interior.

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