A Corda de Areia, Um Conto Sobre a Sabedoria dos Velhos

Um querido amigo acaba de me enviar um texto muito oportuno, que compartilho com meus leitores.

É um conto do brasileiríssimo Malba Tahan, o heterônimo de Júlio César de Mello e Souza, cujos escritos enriqueceram a infância e a juventude de muitos de nós.

A história é bem apropriada à época atual:

A Corda de Areia

Lembro-me muito bem. Foi ao cair da tarde. O céu estava brusco e o ar pesado e imóvel. O sábio e judicioso rabi Haggai chegou, sentou-se no terceiro banco, à esquerda, passou lentamente o lenço pela testa e, voltando-se para os jovens discípulos que o aguardavam ansiosos, narrou o seguinte:

– Conta-se que existiu, outrora, um país rico e próspero, chamado Kid-Elin (leia assim: Qui-de-Lin, e não esqueça esse nome tão sonoro e simples).

As caravanas que percorriam as estradas de Kid-Elin encontravam largas faixas de terras férteis e cultivadas.

A mocidade de Kid-Elin, inspirada pelo Demônio, tornou-se, entretanto, agressiva, pretensiosa e má. Corrompida e envilecida pelo Mal encheu-se de rancor e despeito contra os velhos.

A velhice entrava o progresso! – proclamavam os mais exaltados. – Esse belo país entregue aos moços será mil vezes mais forte, mil vezes mais feliz e glorioso!

O espírito surdo de revolta foi-se apoderando dos jovens. Que lástima (diziam) esse governo decrépito de anciãos! Que lástima!

Não se sabe como, mas a inominável desgraça ocorreu. Precipitaram-se os acontecimentos. Por todos os recantos surgiam fanáticos e conspiradores.

– Eliminemos os velhos! Acabemos com essa senilidade inútil!

É triste relatar. Que nódoa para o mundo, que ignomínia para a História! A mocidade de Kid-Elin, presa de terrível e hedionda alucinação, exterminou todos os velhos.

Todos, não. Houve um que se salvou da hecatombe. Vivia em Kid-Elin um rapaz chamado Zarmã que tinha por seu pai (homem bastante idoso) uma grande, nobre e sincera afeição. E no dia da execrável revolta escondeu o velho no fundo de um subterrâneo, livrando-o assim de cair em poder dos revoltosos homicidas. Para Zarmã a vida de seu pai era um segredo que ele não ousava revelar a ninguém.

Voltemos, porém, à nossa narrativa. Exterminados os velhos, o país de Kid-Elin passou a ser governado unicamente pelos moços, alegres e inexperientes. Para o cargo de Presidente da República elegeram um jovem de vinte e dois anos; o ministro mais amadurecido pela idade não completara dezoito anos; vários generais eram, apenas, adolescentes; o Supremo Tribunal foi entregue a um mancebo de vinte anos incompletos: da direção do Banco Nacional encarregou-se um novato, que precisamente no dia da posse festejava sua décima quinta primavera!

Os juvenis governantes de Kid-Elin proclamaram com alvoroço a vitória:

– Eis o único país do mundo que não tem velhos! Aqui é a mocidade que governa, resolve e desresolve!

Certas notícias correm pela terra com a rapidez do relâmpago pelo ar. No fim de poucas semanas recebia o mundo a informação do movimento de Kid-Elin.

– Kid-Elin é o país dos jovens! Vamos todos para Kid-Elin.

E as estradas encheram-se de turistas e curiosos que iam em busca da nova República.

Para empanar a esfuziante alegria dos jovens senhores de Kid-Elin verificou-se um fato profundamente inquietante e desagradável. De Beluã (reino vizinho) foi enviada aparatosa embaixada constituída de técnicos, jurisconsultos e economistas. Essa embaixada, ao chegar, procurou o jovem Presidente da República e fê-lo ciente de sua espinhosa e delicada missão. Tratava-se apenas do seguinte: O reino de Beluã, por seus legítimos representantes, exigia dos moços a devolução imediata de todas as terras que se estendiam para além do rio Helvo.

E o chefe da embaixada exprimiu-se em termos bem claros, sem poesia e sem retórica:

– O governo beluanita, firmado em seus direitos, exige a entrega imediata do território em litígio. – Temos um tratado, nesse sentido, com Kid-Elin. Aqui estão os documentos.

O Presidente, os Ministros e Magistrados de Kid-Elin examinaram os títulos e as escrituras. Tudo parecia claro, líquido, insofismável. A República de Kid-Elin era obrigada a entregar ao seu poderoso vizinho (em virtude de um acordo feito vinte anos antes), léguas e léguas de uma terra dadivosa e rica!

Que fazer? Seria a ruína para o país. Seria a desgraça para os jovens!

Foi então que o jovem Zarmã (que era o Ministro do Exterior) teve uma inspiração. Lembrou-se de seu velho pai.

– Vou consultá-lo sobre esse caso – pensou. – Meu Pai, com a experiência que tem da vida, saberá descobrir uma solução para essa questão das terras do Rio Helvo.

– Mais tarde, meu filho – afiançou o velho encolhendo os ombros – mais tarde entrarás também na posse desse grave e precioso segredo. Por ora é cedo. Segue o meu conselho, e tudo estará resolvido para o bem de nossos patrícios!

Cega era a confiança que o diligente Zarmã depositava em seu Pai. No dia seguinte recebeu a embaixada reclamante, e na presença do Presidente, Ministros, Magistrados, Generais e altos-funcionários (eram todos muito jovens) repetiu fielmente as palavras que ouvira do ancião:

– A República de Kid-Elin está resolvida a devolver o território por vós reivindicado. Exige, porém, que o Reino de Beluã cumpra na íntegra os seus compromissos e devolva intacta a corda de areia!

Ao ouvirem tal sentença mostraram-se alarmadíssimos os embaixadores beluanitas. Aquela exigência final, expressa pela exigência da devolução da “corda de areia” caiu como uma bomba no meio deles. O chefe da embaixada ficou pálido e trêmulo. E depois de trocar algumas palavras, em voz baixa, com seus conselheiros e ajudantes, assim falou de rompante, com nervosa decisão:

– Desistimos de nosso pedido. Podeis conservar, para sempre, o território do Helvo, com todos os seus campos e searas.

Neste ponto fez o estrangeiro uma pausa, e logo ajuntou com voz estorcegada, cortante de ironia e rancor, sacudindo o busto com dureza:

– Cabe-me, entretanto, desmentir as notícias propaladas pelos vossos agentes e emissários. Posso jurar que a República dos jovens não existe. Tudo mentira! Há velhos, ainda, neste país!

Mas, afinal, que significa isso: – Corda de areia?

Eis o segredo que o Tempo (e só o Tempo) se encarregará de revelar aos jovens. A velhice é um tesouro. Tesouro de sabedoria, clarividência e discrição. Sem o amparo seguro da velhice, a parcela jovem da humanidade estaria perdida e extraviada, pelos descaminhos da vida. É a velhice que sabe onde encontrar essa maravilhosa corda de areia que liga o Passado ao Presente e enlaça o Presente com o Futuro.

E o bondoso e paciente rabi Haggai repetia quarenta vezes falando aos discípulos atentos:

– Lembrai-vos, meus jovens amigos, lembrai-vos sempre da “corda de areia”.

Diversas fontes publicaram esse texto, eu a copiei do site Mil e Um Contos.

Deixe seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *