A Reparação Que Minha Mãe Não Viveu Para Ver

E-mail que recebi semana passada:

“Sehr geehrte Familie Guelmann,
es freut uns, Sie zu der Einbürgerungsfeier am Freitag, dem 28.11.2025 um 10:00 Uhr einzuladen. Während der Feier wird Ihnen die Einbürgerungsurkunde übergeben, dadurch wird diese wirksam. Sie werden also zu diesem Zeitpunkt Deutsch.
Mit freundlichen Grüßen
Ihre Staatsangehörigkeitsabteilung
Generalkonsulat der Bundesrepublik Deutschland”

(“Prezada família Guelmann,
estamos felizes em convidar os solicitantes para a cerimônia de naturalização na sexta-feira, dia 28.11.2025, às 10h. Durante a cerimônia, as senhoras e os senhores receberão seus certificados de naturalização, que se tornam válidos no momento da entrega.
Neste momento, se tornarão alemães.
Atenciosamente,
Seção de Nacionalidade
Consulado-Geral da República Federal da Alemanha”
)

Poderia ser um e-mail como tantos outros – mas não é, e eu o aguardava há algum tempo. A concessão de uma cidadania, em um mundo cada vez mais globalizado, pode ser vista como algo de menor importância, dependendo de quem a concede e de quem a recebe. No meu caso, porém, reveste-se de características especiais e puxa pela emoção.

A imagem que ilustra a coluna de hoje mostra a página de abertura do passaporte de uma menina; é minha mãe, Selda. O documento foi emitido quando ela tinha nove anos, em 11 de outubro de 1934, em Baden-Baden, onde nasceu, e serviu para que ela, com os pais e um irmão mais novo, viesse para o Brasil. Um ano antes, a besta-fera responsável pela mais negra página da história havia assumido o cargo de Chanceler, provocando de imediato a saída de cerca de 37 mil judeus.

Meu avô Max Schilklaper, z’l*, ao contrário de muitos que acreditavam que aquela situação não perduraria, percebeu que o boicote a lojas judaicas, a expulsão de judeus do serviço público e episódios de violência nas ruas eram indícios mais do que suficientes para fazer o mesmo. Na página onde estão os dados do passaporte, a marca dos tristes tempos e das circunstâncias que determinaram a saída do país: “STAATENLOS” (Apátrida).

O passaporte perdeu a validade quando, já adulta e por naturalização, minha mãe tornou-se cidadã brasileira. Estava guardado comigo há mais de sessenta anos, desde seu falecimento, e nunca imaginei que um dia seria utilizado como uma espécie de ferramenta poética para que seus descendentes fossem beneficiados.

O Brasil que generosamente acolheu a família Schilklaper foi escolhido porque, pouco antes, um irmão ainda solteiro de meu avô havia emigrado para cá. Desembarcaram em São Francisco do Sul, e Joinville foi o destino por abrigar grande colônia alemã. De lá, após o nascimento da terceira filha, a família mudou-se para Curitiba.

Não há como não lembrar de uma cena marcante do filme Ship of Fools, cuja história se passa justamente em 1933. A bordo do navio, um passageiro questiona um judeu alemão, Lowenthal, por que ele estava voltando para a Alemanha com todos os sinais de perigo já tão visíveis. E ele responde, com a segurança típica daquela geração:
“Nada vai nos acontecer. Nós, judeus, somos mais alemães que eles.”

A frase, tão simples, explica quase tudo. Explica a confiança ou a ilusão dos judeus alemães, profundamente assimilados, orgulhosos de sua cultura e de sua pátria; explica também por que tantos demoraram a perceber que o nazismo não era uma mudança de governo, mas de civilização. E ecoa, ainda hoje, como um aviso sobre os riscos da cegueira histórica.

Ao mesmo tempo, faz-me pensar em como minha mãe receberia a reparação histórica que alcança agora sua quarta geração. Teria ela o mesmo sentimento que me atinge? Eu vejo assim: enquanto o personagem do filme acreditava que “nada aconteceria” porque se considerava tão alemão quanto qualquer outro cidadão, nós recebemos hoje um documento que reconhece justamente o contrário – que algo terrível aconteceu, sim, e que o Estado alemão contemporâneo assume a responsabilidade por esse passado.

Há nisso uma mistura de emoção, memória e justiça tardia que não cabe apenas no bolso onde se guarda o passaporte. Cabe na consciência.

Às vezes me impressiona como certos padrões se repetem: ontem havia quem acreditasse que o mal podia ser ignorado; hoje há quem tenha fechado os olhos para o horror do 7 de outubro e, pouco depois, posa como guardião das minorias. A história não se repete, mas as atitudes, infelizmente, sim.

Eu e meus irmãos somos a segunda geração. A partir da terceira, todos os descendentes da linda menininha do passaporte são uma mistura que faria o canalha-mor que pregava a pureza do sangue uivar de ódio. Esses novos passaportes representam uma doce vingança, uma vitória da Civilização sobre a barbárie, por reunir DNA de várias origens – incluindo a doçura de um bisneto com sangue japonês.

Ah, ia esquecendo: um de meus filhos sugeriu que agora o passaporte seja doado ao Museu do Holocausto de Curitiba. Acho que a mãe, avó e bisavó Selda gostaria disso. 

(*) “z’l” é a abreviação da palavra em hebraico “zikhrono livrakhá” que significa ‘Que sua memória seja uma benção” e é usada após o nome de pessoas que já faleceram.

 

Deixe seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *