“No português bem claro:
Puta orgulho de conhecer, conversar e até uma vez dançar quadrilha na chácara dos Schulman com esta inteligência rara e simpatia maravilhosa. Ficará marcado para sempre. Quando meus parentes de fora vinham para Curitiba, não tinha nada para mostrar; depois do Jaime, não dava tempo de mostrar tudo.” – (Vania Osna, uma Curitibana orgulhosa).
Desde a última quinta-feira estamos imersos na ausência do Jaime Lerner.
A dor de sua partida só é amenizada pelas mensagens e matérias que falam do seu talento e do comprometimento com a causa de tornar as cidades e a vida de seus moradores mais humana e justa.
Um dos artigos que li remete à transformação de um antigo Paiol de Pólvora num dos espaços cênicos mais celebrados do país, pelo seu formato único.
A matéria, que compartilho agora, é do jornalista Cássio Casagrande:
O MUNDO FORA DOS AUTOS
Jaime Lerner (1937-2021), o curitibano mais famoso do mundo
Memória pessoal do urbanista revolucionário cujo legado transcende a política
CÁSSIO CASAGRANDE
Entre os feriados do Natal e do Ano Novo de 1971, servidores da Prefeitura de Curitiba trabalhavam incansavelmente até altas horas no antigo e desativado Paiol de Pólvora da cidade. Eles passavam cabos de som, testavam iluminação e checavam os assentos recém-instalados na antiga instalação circular, que se converteria agora em um arrojado Teatro, projeto de um jovem prefeito que assumira o cargo aos 33 anos de idade, em princípios daquele mesmo 1971. Tudo deveria ficar pronto até a noite do dia 27, para o show de inauguração, que contaria com Vinicius de Morares, Toquinho, Miúcha e companhia.
Eu era criança e morava ali ao lado, na Rua Chile. Meu tio Joni passou lá em casa na noite que antecedia o show e me levou para ver o novo teatro; contrariando todas as regras de segurança, ficamos zanzando entre os trabalhadores, vendo tudo ser preparado. Lembro que tropecei em um cabo e tomei bronca de um operário. Eu tinha cinco anos de idade e fiquei maravilhado com toda aquela azáfama, nunca tinha visto um teatro por dentro. A grama verde ao redor do velho paiol, iluminada pelos refletores externos, rescendia o frescor do plantio recente. É uma das memórias de infância mais antigas que guardo.
Estávamos no auge da ditadura militar. Jaime Lerner havia sido indicado prefeito pelo regime autoritário, pois, de acordo com a EC 1/69 à Constituição de 1967, o presidente designava os prefeitos das capitais. Lerner foi escolhido no espírito “tecnocrático” que, então, costumava orientar essas designações. Ele parecia aos generais um mero quadro “técnico”, indicado pelos políticos da ARENA no Estado do Paraná. Filho de imigrantes judeus da Polônia, o arquiteto que dirigia o instituto de planejamento urbano da cidade não demonstrava inclinações políticas claras, era apenas um jovem e brilhante urbanista.
O convite à trupe de Vinicius de Moraes para inaugurar o Paiol era, nesse contexto, algo surpreendente. O poetinha e diplomata havia sido “aposentado” pelo AI-5, eufemismo usado para a cassação, decidida, soube-se mais tarde, por alegada “vagabundagem”. Desde então, caíra em desgraça e começava a retomar sua carreira artística associando-se a Toquinho. A parceria seria o caminho para o seu retorno triunfal. Na passagem por Curitiba, Lerner acabou se enturmando com a trupe em noite de boemia, ao ponto de ter composto, em coautoria com Vinicius e Azeitona, a música “Malandro de Araque”. Tempos depois, inspirados no show que apresentaram no velho prédio do novo teatro, Toquinho e Vinicius compuseram “Paiol de Pólvora”, uma crítica nada sútil ao regime militar. Em 1973, a censura proibiria sua execução pública.
Lerner governou Curitiba como prefeito indicado pelos militares por dois períodos: 1971-1974 e 1979-1983. Nestas administrações, começou a lançar suas ideias revolucionárias, como ruas exclusivas para pedestres, avenidas residenciais convertidas em áreas de lazer (jardim ambiental), ciclovias, canaletas exclusivas para ônibus (futuro BRT), troca de lixo reciclável por vale-transporte ou cesta básica, e criação de parques verdes.
Com a redemocratização, decidiu tentar a recondução através do voto popular, na eleição de 1985, para o “mandato-tampão” criado pelo Congresso como regra de transição. Para surpresa de muitos, filiou-se ao PDT de Leonel Brizola. Apesar do renome que já granjeara e da boa avaliação de suas administrações, enfrentava o desafio de concorrer com um político popular como Roberto Requião, um homem do MDB que trazia a credencial de oposição à ditadura, quando esta sofria enorme repulsa. Além dessa dificuldade, Lerner desagradava a esquerda porque era identificado com o regime militar e, ao mesmo tempo, enfrentava resistência na desconfiada direita conservadora de Curitiba, em razão de sua repentina adesão ao “socialismo moreno” do velho caudilho gaúcho.
Nesse mesmo ano de 1985 eu entrei na Faculdade de Direito e passei a militar no movimento estudantil, tendo me filiado ao PDT. Como voluntário, fiz campanha para Lerner, distribuindo adesivos do “coração curitibano”, símbolo um tanto edulcorado, concebido por marqueteiros para atenuar qualquer imagética socialista… A eleição foi apertada e Lerner perdeu por pouco. Em 1988, na nova eleição para Prefeito, já sob a égide da Constituição de 1988, Lerner deu a volta por cima e se elegeu com grande votação, governando a cidade pela terceira vez (a primeira pelo voto popular), até 1992.
Encontrei-me pessoalmente com Jaime Lerner pela primeira vez nesse período de ocaso, entre a derrota de 1985 e a vitória de 1988. Fui a uma reunião da “Juventude do PDT”, em um sábado de manhã, na qual havia meia dúzia de gatos pingados (era o tempo em que jovens perdiam a manhã de sábado em reuniões de partido político…). A sede do PDT era um cafofo bem estranho, com porta rolante de metal típica de botequim, se não me engano ficava na Travessa da Lapa. Eis que, do nada, o Jaime Lerner aparece lá, cumprimenta a todos de forma simpática e fica ali ouvindo os debates. Achei, então, inacreditável que o maior quadro do partido no Estado tivesse despendido seu precioso tempo com aquilo. Ao final do encontro, ficou parado na porta, despedindo-se de todos. Passou-me uma imagem de simplicidade e humildade.
O terceiro mandato na prefeitura foi coroado de êxito e já então Lerner começava a conquistar fama mundial, suas reformas e projetos sendo objeto de matérias em todos os grandes jornais da Europa, dos Estados Unidos e do Oriente.
Ele ganhou grande projeção e assumiu maiores ambições políticas, elegendo-se por duas vezes governador do Paraná, administrando o Estado entre 1995 e 2002. Entre um mandato e outro, bandeou-se para o então PFL, depois de desentender-se com Brizola. Seus feitos nesse encargo foram controversos, tendo sofrido questionamentos políticos e judiciais duros quanto a processos de privatização e de concessão de pedágios em estradas de rodagem. Crítico da infestação de carros nas grandes cidades, trouxe a indústria automobilística para o Paraná.
Abandonou a política com o fim da governadoria, e dedicou-se ao urbanismo, levando suas ideias reformistas para dezenas de cidades no Brasil e no mundo. Presidiu a União Internacional dos Arquitetos entre 2002 e 2005, e foi aclamado como um dos maiores urbanistas de todos os tempos. Como todo homem público de destaque, teve altos e baixos. Sua carreira política, porém, foi apenas colateral à sua verdadeira vocação de urbanista e nesse campo estamos diante de um gênio inconteste. Foi, sem dúvida, o curitibano e paranaense mais famoso no mundo.
A partida de Jaime Lerner entristeceu os seus concidadãos. Ele foi para Curitiba o que Haussmann representou para Paris e Pereira Passos para o Rio de Janeiro: um grande e audacioso reformador, que conformou o destino da cidade – com todos os problemas e contradições que reformas urbanas desta envergadura representam.
Por isso, além dos fãs, também teve muitos críticos, que o consideravam elitista, crítica um tanto injusta quando se observa que sua revolução no sistema de transporte público beneficiou essencialmente a classe trabalhadora. Induvidoso é que formulou e deixou uma inovadora “forma de governar a cidade”, criando quase que um “partido lernerista” na capital do Paraná, cujo maior legatário é o atual Prefeito, Rafael Greca.
Vi Jaime Lerner pessoalmente pela última vez há cerca de sete ou oito anos. Eu estava em Curitiba, com a família, em um bar no Juvevê, uma ensolarada manhã de sábado, mesa na calçada; ele chegou ali sozinho, caminhando lentamente, apoiado em uma bengala; passou por nós e com seu sorriso tímido, cumprimentou-nos, como cumprimentou os demais clientes. Sentou-se sozinho enquanto aguardava um amigo. Tinha o semblante tranquilo de quem cumpriu um grande propósito na vida.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
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E aproveite para assistir reportagem exibida na Band Curitiba no dia do falecimento do Jaime.