Um Bilhete a 30 Mil Pés — E o Mundo Fica Melhor

Um gesto simples de uma comissária de bordo lembra que a gentileza ainda tem lugar, mesmo nas alturas (e que ainda vale a pena acreditar nas pessoas).

Há gestos que não se apagam com o tempo. Permanecem na memória como delicadas provas de que ainda há espaço para a gentileza no mundo — mesmo nas alturas.

Hoje, aos 77 anos, talvez por efeito da idade ou, quem sabe, da experiência acumulada, confesso que venho desenvolvendo uma sensibilidade maior para esses pequenos atos de humanidade que flagramos. São atitudes que transcendem o dever, que vão além do fazer certo e chegam ao coração.

Lembro de um episódio que comentei anos atrás em meu blog e que merece — ou melhor, exige — ser relembrado. Aconteceu num voo da Endeavor Air, subsidiária da Delta Air Lines, entre Baltimore e Nova York. A protagonista: uma comissária de bordo chamada Janna. A destinatária de seu gesto: uma jovem surda, Ashley Ober, que viajava sozinha pela primeira vez.

Ashley estava apreensiva – e sua mãe, em casa, também. Além de voar só, teria que fazer conexão no movimentado aeroporto JFK. O medo de não compreender os anúncios, de se perder no processo, era real. Mas ali, em meio à rotina de um voo comercial, um gesto singelo mudou tudo.

Janna escreveu uma nota. Sim, uma simples nota — escrita à mão — explicando com clareza quais botões usar, onde estavam as saídas de emergência, e deixando claro: “Se precisar de ajuda, é só me chamar. Estou aqui.”

Mais do que uma instrução, aquilo foi acolhimento. Uma espécie de abraço silencioso, oferecido com papel, caneta e empatia.

A mãe de Ashley, Loretta, publicou no Twitter uma foto da nota, que dizia:

“Oi, bom dia, Ashley,
Meu nome é Janna e serei sua comissária de bordo no voo de hoje para o aeroporto JFK.
Há dois botões acima da sua cabeça: um amarelo, que controla a luz de leitura, e um maior, cinza, com o desenho de uma pessoa, que você pode usar para me chamar, se precisar de alguma coisa.
Em caso de emergência, a saída mais próxima fica atrás de você. Essas são as nossas saídas sobre as asas.
Por favor, não hesite em pedir ajuda, se precisar.
Novamente, meu nome é Janna, e seja bem-vinda a bordo de nossa aeronave CRJ200.
Sua comissária de bordo,
Janna”

A história logo se espalhou. Não pela grandiosidade do gesto, mas justamente pelo contrário: porque foi pequeno, mas cheio de humanidade.

Esse tipo de ação me fez lembrar uma expressão muito cara a uma das maiores referências da minha vida: o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, com quem tive a honra de trabalhar. Ele falava com frequência sobre as gentilezas urbanas, que nada mais são do que esses gestos espontâneos de cuidado, atenção e solidariedade — como ajudar um idoso a atravessar a rua, segurar o elevador para alguém, não movimentar o carro e deixar um pedestre retardatário atravessar mesmo que o semáforo já tenha aberto, ou apenas sorrir para um desconhecido. Coisas simples, que custam pouco ou nada, mas que somam muito num mundo cada vez mais apressado e individualista.

Infelizmente, essas gentilezas parecem ter caído em desuso — seja pela correria dos centros urbanos, pela má qualidade da educação (ou da criação), ou porque fomos nos afastando do outro, como se a vida nos empurrasse para a indiferença. Mas elas seguem sendo necessárias. E continuam possíveis.

E, para cada gesto como o da comissária Janna, há inúmeros outros que vão na contramão. Um exemplo? O péssimo hábito, comum no Brasil, de deixar os carrinhos de supermercado espalhados pelo estacionamento — inclusive nas vagas preferenciais — em vez de levá-los de volta ao local apropriado. E falando nisso: estacionar o carro nas vagas destinadas a pessoas com deficiência ou idosos? E a “esperteza” de furar filas, sejam elas do que forem, assim, na cara dura? Parece pouca coisa, mas revela muito. Porque gentileza é isso: pensar no outro, mesmo quando ninguém está olhando.

Numa época em que tanta gente anda com os olhos grudados em telas e os ouvidos surdos para o mundo ao redor, esse tipo de atitude — tanto a boa quanto a má — fala alto.

Janna não reinventou o mundo. Mas melhorou o dia — talvez a vida — de alguém. E, ao fazer isso, ensinou a todos nós que não é preciso muito para cuidar de alguém.

Que a gente aprenda com ela. Que sejamos mais Janna. Mais escoteiros. Mais gentis. Mesmo que não estejamos a bordo de um avião. 

MÍNIMAS QUE SÃO O MÁXIMO
• “Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro.”
(Talmude Babilônico, Sanhedrin 37a)

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