Certa vez, meu tio Moisés Bergerson, com quem morei dos 17 aos 25 anos, me disse algo que uso com frequência:
– “Muitas vezes um bom vizinho é melhor que um parente.”
Ele estava se referindo ao então Deputado Estadual Fuad Nacli, que morava do outro lado da rua. Certamente muitos de nós já tivemos provas de que o que ele dizia faz muito sentido, especialmente em momentos difíceis ou de necessidade. A proximidade física e o convívio cotidiano podem fazer com que vizinhos se tornem quase parte da família, muitas vezes estando mais disponíveis do que parentes que moram longe ou que, por diversas razões, não são tão presentes. E o Jaime Lerner, com quem tive o privilégio de trabalhar, falava — e escreveu um livro sobre isso — que “o vizinho é parente por parte de rua”.
“Dona” Anália, que empresta seu nome à minha crônica de hoje, foi isso: uma vizinha que deixou marcas profundas em quem teve sorte de a conhecer. E mais: além de aquecer tantas vidas com os casaquinhos, gorros, sapatinhos e mantas que tecia e mandava para Instituições de Acolhimento, ainda ao partir ajudou a tecer os fios invisíveis que unem as pessoas.
Passei a ser vizinho dela em 2006, quando casei com a Rosane e mudei “para o outro lado da rua”, bem na frente de sua casa. É uma rua muito tranquila, com redutores de velocidade em ambos os lados, e onde as crianças (que hoje andam por aí por esse mundão de D’us) colocavam “mini-traves” e jogavam futebol sem nenhum perigo. Alcione, filha, e João, neto, vieram morar com a mãe após o falecimento do pai e avô. João tem a idade do nosso Daniel, é um rapaz excepcional, devotadíssimo ao bem-estar da mãe e da avó.
Mais recentemente passamos a fazer um intercâmbio: canja e compota de pêssego daqui para lá, pão caseiro e doce de amendoim de lá para cá. Ultimamente, já aos 95 anos, “Dona” Anália vinha enfrentando problemas de saúde, com eventuais idas ao hospital e, há poucos dias, descansou.
Alcione, a filha devotada, escreveu e distribuiu no sepultamento algo extremamente tocante, uma elegia que transcende ao que pressupõe o amor e a admiração filial:
Mensagem de Partida – O Fio da Vida
Há pessoas que passam por este mundo como mãos que tricotam: entrelaçam afetos, pontos, fios e silêncios com uma delicadeza que só o tempo reconhece. Pessoas assim não apenas vivem — elas tecem. Tecem vínculos, histórias, presenças. E quando partem, não desfazem a trama. Elas a completam.
Anália, com seus 95 anos de vida, foi dessas pessoas raras. Uma guerreira silenciosa, feita de fibra e ternura. Com suas mãos pequenas e hábeis, dedicou boa parte da existência à arte de tricotar. Mas mais do que roupas, ela teceu cuidado. Pequenos sapatinhos, delicados como o afeto que carregavam, nasciam de suas agulhas como promessas de acolhimento. Cada ponto era um gesto de carinho, uma antecipação de amor, uma forma de abraçar a vida antes mesmo que ela chegasse.
Aqueles que passam a vida tricotando nos ensinam algo profundo, ainda que sem palavras: que cada gesto, por menor que pareça, compõe um tecido maior. Cada laçada, cada ponto desfeito com paciência, revela o ofício de quem soube transformar o cotidiano em cuidado, e a vida em presença amorosa.
E Anália soube fazer isso também pelos sabores. Tinha um apreço especial por comer bem — um gosto simples, mas cheio de significado. Entre tantas delícias, havia um que jamais podia faltar: o doce de pêssego. Ele não era apenas sobremesa, era ritual, memória, afeto cristalizado em calda. Era como se, ao saboreá-lo, ela celebrasse a vida com a mesma delicadeza com que a vivia.
Agora, diante da sua ausência, ficamos com o novelo do luto nas mãos. Ele pesa, confunde, embaraça. Mas também é convite: o que faremos com esse fio que ainda pulsa em nós? Talvez seja hora de aprender a tricotar memórias, a costurar os dias com aquilo que herdamos de Anália — sua doçura, sua força discreta, sua escuta generosa, sua entrega silenciosa.
Seu corpo, por fim, começou a se despedir pela perna — a parte que primeiro deixou de viver. E até essa despedida parece ecoar a forma como ela viveu: aos poucos, com delicadeza, respeitando o tempo das coisas. Como quem, ao arrematar o último ponto, encerra a trama com a mesma ternura com que a iniciou.
A morte, nesse sentido, não rompe o fio. Ela apenas o entrega a quem permanece, como um legado invisível, pedindo continuidade. E nós, no nosso tempo, vamos tricotando esse luto em amor, até que ele se transforme — como todo verdadeiro trabalho psíquico — em elaboração, em afeto vivo, em memória que aquieta.
A trama da vida que Anália deixou não será desfeita. Ela segue, firme e delicada, nas mantas que aquecem nossas lembranças, nos fios que unem nossos corações, nos gestos simples que herdamos — e repetimos — sem perceber. Ela partiu, sim. Mas o que foi tecido com amor permanece.
Amamos você.
Alcione e João Gabriel.
“Dona” Anália não apenas teceu mantas, casaquinhos e carinho ao longo da vida. Indiretamente, no meu caso, ela ajudou a tecer os fios invisíveis que me reconectaram ao meu passado: em seu sepultamento reencontrei alguém que não via há décadas, a querida Blanca Susana da Silva, psicóloga e colega de turma da Alcione, que foi uma amiga muito querida de minha irmã Gisele na Escola Israelita Brasileira Salomão Guelmann, no final dos anos 1950. A Gisele faleceu prematuramente, pouco depois, com meus pais e a Gilce, a outra irmã, e me conectar com a Blanca e ouvi-la falar sobre ela aqueceu meu coração. Uma coincidência que não parece mero acaso, mas sim mais um “entrelaçamento” sutil do destino: a gente percebe que pessoas que só fizeram o bem, como “Dona Anália”, seguem unindo pessoas, mesmo depois que partiram.