Essa é Para Alegrar a Torcida do Flamengo

É inegável que até mesmo quem não aprecia ou simplesmente não acompanha o futebol brasileiro sabe que o Flamengo está “voando baixo” no Brasileirão.

O time realmente estabeleceu um novo patamar no cenário futebolístico, seja pelo elevado investimento em jogadores, seja pela contratação de um técnico português que aparentemente conhece muito bem o ofício.

Para confirmar, veja o que disse o jornalista Carlos Andreazza há dois dias em sua coluna no Jornal O Globo:

Flamengo tem a distinção da inteligência

Time é um choque num país que raciocina como Fábio Carille e reage como Felipe Melo

 

Há um projeto de Brasil — de esperança no país — no futebol do Flamengo; na maneira como joga este Flamengo. Não é exagero de torcedor; aqui falando um que ia longamente afastado, que havia anos abandonara o estádio, e que de repente se mobilizou, de todo capturado, pelo conceito materializado na forma como o time iniciou o segundo tempo da partida contra o Grêmio no Maracanã: vencendo por um a zero, em posição confortável para se classificar à final da Libertadores, mas atacando (e surpreendendo) para fulminar — e para fulminar com ímpeto e ordem, maestro absoluto das ações — como se precisasse ainda de mais quatro gols.

É espantoso. E eu simplesmente não posso não ver. Não tenho esse direito. Não tenho, se me pressinto ante algo raro, que intuo tomar corpo para a história. Seria irresponsável faltar à única ocorrência verdadeiramente extraordinária no Brasil de hoje se tal se dá, ao menos uma vez por semana, na cidade em que vivo. Este Flamengo é um acontecimento.

Falo de um campo que é sobretudo das ideias. Este Flamengo é uma ideia. Durará? Estaremos diante de um novo ciclo de dominação futebolística com impacto sobre o ambiente cultural e o convívio social? Não se vê algo parecido, não se tem uma tal chance de influência, desde o brilhante — e brilhante porque cerebral — São Paulo de Telê Santana; mas também de pensadores como Raí, Müller e Palhinha.

É evidente que se trata, a do Flamengo, de uma equipe muito bem treinada; e que, em boa parte, deve-se atribuir ao triunfo do método de trabalho de Jorge Jesus o fato de o grupo de atletas que comanda ter assimilado tão rapidamente a dinâmica da intensidade por meio da qual compreende o esporte. O homem tem enormes méritos. Estratégia nenhuma, porém, não uma de aplicação arrojada como a que desenha, prospera sem um conjunto de executores que — para além de níveis técnicos entre bom e ótimo — sejam também indivíduos com capacidade intelectual acima da média.

Este é o barato; o que faz a diferença. Este Flamengo é uma ideia original num país cujo pensamento se amesquinhou; num país, por exemplo, que, em 2014, apostou em Felipão para repetir 2002: uma busca que nem mesmo pretendia resgatar uma concepção de sucesso no passado, senão tão somente a marca, a memória, do título. É onde estamos. Como nação. Em Tite; ainda em Felipão. Talvez ainda em Parreira. Dunga?

O que distingue o jogo do Flamengo não é a simples e convencional reunião de talentos; mas a imprevisibilidade de uma reunião de talentos que pensam, sujeitos capazes de ler o tabuleiro desde dentro — e de se mexer, de girar, para mudar, para propor, até resultar. Não é somente a posse de bola, o controle da esfera; mas o ritmo que se imprime uma vez a dominando — a sedução do movimento, a atração do repertório, do vocabulário, a graça da conjugação perfeita, o charme de se manejar os tempos, de alongar a oração, para de súbito acelerar o fraseado, tornar aguda a sentença, e arrematar, e sentenciar. Não é apenas velocidade. Mas a velocidade exata. A velocidade econômica. A ciência de ser a própria regência. A hipnose do serpenteio, como aquela das palavras que se vão insinuando, costurando, estruturando, até o argumento inapelável, irrefutável — o bote. O Flamengo ataca como o movimento da maré, subindo, subindo, oprimindo, até que já não haja senão a água porta acima, o gol rede adentro.

Este é o verdadeiro sacode que o Flamengo dá no futebol brasileiro; e talvez mesmo, para além da bola, no debate público do país: o da inteligência, o do investimento radical na inteligência — o que pressupõe confiar, arriscar, ousar. Não é novidade entre nós. E por isso dói tanto mais. Porque faz tempo nos perdemos do cultivo das ideias, da educação para refletir, da solução que descortina o palco e, pois, o espaço para criar. Este Flamengo que formula e aplica, este Flamengo que é força de permanência, que parece se expandir — como um Gerson total, o melhor jogador brasileiro em atividade no mundo — para comprimir e ocupar todo o terreno, este Flamengo é um choque num país que raciocina como Fábio Carille e reage como Felipe Melo. Um país que voa —que só voará — como galinha. Mas ao qual bastaria se posicionar como Filipe Luís.

Jorge Jesus tem enormes méritos. Nenhum maior do que o de haver entendido a máquina de cérebros que tem em mãos — e as possibilidades que essa engrenagem formuladora lhe oferece. Aí está, pois, a mensagem de esperança que o jogo do Flamengo encarna e projeta sobre e para o Brasil: são brasileiros, mão de obra nacional, os pensadores que se concertam para domar o campo e progredir, seja onde for, e para impor — sob alcance raramente visto de concentração coletiva — uma visão mesmo de mundo; são brasileiros como Éverton Ribeiro, intelectual capaz de abrir uma América à frente num só toque na bola.

Serão campeões? Não sei. Educam? Sim.

A coluna no site do jornal pode ser acessada aqui.

 

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